07/09/11

A PERSEGUIÇÃO

As férias grandes naquele tempo eram mesmo grandes.

Mais um dia quente de Agosto e não sabia como gastar o tempo que restava da longa e quente tarde de verão. Recordo estar sentado numa lage sob uma alfarrobeira cheia de longas favas pretas penduradas prestes a cair na cama de folhas e pedras sob a copa daquela velha árvore.
A casa do Ricardino era longo em frente, mas ele não estava por ali. Estranho? Onde andaria? Ricardino tinha quase o dobro da minha idade à época, mas frequentávamos a mesma classe. Não aprendia. Não aprendia a ler e a escrever, tudo o resto ele já sabia.Fora da sala de aula ele era o mais sábio de todos nós  Era, na verdade um trombadinha dos anos 70. O seu espaço vital era a rua. E naquele dia por onde andava? Em casa não estava. Só de castigo. Mas ninguém o conseguia pôr de castigo. Até a professora já tinha desistido. Umas réguadas ainda as comia, mas castigos? Não.
Ricardino era o meu vizinho mais próximo. Era só atravessar o caminho e lá estava a pequena e modesta casa onde ia dormir. Não era o meu melhor amigo, mas olhando para trás sei que Ricardino era o meu anjo da guarda. Ninguém me tocava porque, já quase homem aos 13 anos, não deixava e ninguém se atrevia.

A monotonia quente daquela tarde estava a causar-me um tédio de morte. Ninguém. Nem um amigo para brincar.

Ainda o sol ardente me mantinha quieto na sombra da alfarrobeira quando ouço cães a ladrar. Muitos. Uma matilha de cães aproximava-se vinda de um baldio. Grandes, pequenos, todos vinham em corrida lenta em direcção a mim. Fiquei em sobressalto. Os rafeiros vinham no encalce de algo ou perseguidos por algo que os afugentava no sentido do caminho. Ao aproximarem-se reparei que ambas as teses eram verdadeiras. Vinham todos na perseguição de uma cadela com o cio e também empurrados por alguém que os assustava com uma enorme vara de cana da índia. Ohh! Era o Ricardino que os empurrava pelo caminho abaixo. Cada macho tentava manter-se o mais chegado da cadela assediada. De dentes arreganhados, para manter todos os outros afastados, um enorme cão branco sobressaía dentre eles. A cadela rosnava permanentemente, mantendo-os à distância possível. A algazarra da matilha era excitante. Finalmente algo para fazer. -Vem. Ricardino estava decidido a ver como os cães iam resolver aquela disputa. Ele sabia que aquilo ia acabar em cópula e queria ver que era o feliz contemplado. O mais forte ou mais esperto.

Juntei-me a ele atrás da matilha, em passo de corrida, para não descolar. Dali em direcção à ria era sempre a descer. Na refrega dos machos o grupo desviou-se para campos ceifados, cheios de torrões onde me era difícil correr. A certa altura um muro impediu-lhes o caminho e ao voltar para trás envolveram-se numa luta renhida de dentes e garras enraivecidos e selvagens. Deram-nos uma primeira ideia do mais forte. O cão branco levava vantagem pelo tamanho. Mas a cadela era tão mais pequena do que ele, pensei. Sem nos apercebermos os animais correram na nossa direcção. Perigo inesperado! Assustei-me. Sem saber onde me refugiar vi o meu amigo colocar-se à minha frente e com a vara a varejar tudo o que mexia à sua frente encaminhou os animais que se guerreavam no sentido de um caminho estreito ladeado de cactos em direcção ao mar. As minhas pernas quase não me sustinham em pé. Ricardino olhou para mim e disse convicto: - Anda. E eu fui.

Os animais estavam a afastar-se de nós.Corriam sem escapatória caminho abaixo. Respirei de alívio e segui-o. A matilha mais distendida corria largada, quando ouvi o comboio sair do apeadeiro de Bias do Sul em direcção à Fuseta. Os animais corriam na direcção da linha. O comboio apressava a marcha. Nós, já sem fôlego, ficávamos para trás. O ladrar dos cães ouvia-se cada vez mais ao longe. O comboio apitava insistente. Ricardino, ainda de cana da índia em punho, continuava a afugentar os cães. Vi o comboio aproximar-se. A matilha estava mesmo junto ao caminho de ferro. Ao sentirem o comboio vão afastar-se da linha, pensei. O comboio passou, na sua cavalgada estridente apitando em aflição. Deixei de ouvir o latir da matilha. Ao passar a locomotiva vi-a dispersar. O comboio passou e os canideos pararam de se fazer ouvir. Sumiram-se...cada um para seu lado.

O meu protector deu um grito na minha direcção: _ Corre! despacha-te. Ele já estava quase sobre os carris. Recuperei forças e corri quanto pude até ficar a seu lado sobre os carris. No sentido levante deparei-me com um espectáculo inesperado e macabro. Pedaços de carne e ossos completamente disformes fumegavam junto aos carris. Aqui e ali reconheciam-se partes de carne dilacerada: uma cabeça, pernas, as vísceras. Mais do que um animal tinha encontrado a morte naquela orgia de excitação sexual canina a que o comboio pôs inesperadamente termo. Por fim a cabeça do grande cão branco parecia olhar para mim culpando-nos pela sua morte.
Percorremos o troço de via férrea ensanguentada e repleta de carne fumegante em silêncio. Regressamos a casa cansados e mudos no fim daquela tarde de Verão.

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