09/09/11

TUDO PARA VER ESPANHA

Quando terminamos a 4ª classe eu fui estudar para Olhão e o Samuel foi para a tele-escola da Fuseta. Éramos vizinhos e essa separação não nos afastou um do outro. Em tempo de férias grandes, depois da minha mãe desistir de me fazer dormir a folga, escapulia-me até à arrecadação onde sabia que ele estava com alguma engenhoca entre mãos. Samuel adorava mecanismos eléctricos. Se tivesse nascido umas décadas mais tarde seria um taradinho dos computadores, certamente.
Fui ao armazém onde guardava a «bicicleta  de corrida» azul forte e pedalei até à oficina do Samuel. Estava entretido. Os tempos em que, como bando de pardais, nos juntávamos no pinheiro velho para brincar aos saltos de Tarzan tinham ficado para trás desde que o Xico, creio que foi o Xico, caiu e partiu um pé. Eu não estava lá nesse dia, nem naquele em que o Derinho deu um tiro com a espingarda de pressão e o chumbo veio alojar-se-lhe numa perna. Por esses dias eu passava um mês inteiro no internado no velho hôspital de Faro. Cortaram a corda e acabou-se a brincadeira. descobrimos que nadar para o «tejo» tardes inteiras era bem melhor.
Sempre fui fascinado por mapas. Adorava descobrir  onde ficavam os países distantes que, a preto e branco, a televisão me mostrava. havia um livro de geografia trazido pelo pai do Samuel das suas viagens em barcos enormes que partiam e regressavam ao porto de Roterdão. Uma das páginas do livro tinha apenas o mapa da Península Ibérica. Chamei a atenção do meu amigo explicando-lhe que moravamos muito perto da Espanha. Era logo ali. Mostrei-lhe onde moravamos e seguindo a linha que representava a estrada nacional 125 chegamos ao Guadiana. - E aqui do outro lado é logo a Espanha, vês? O Guadiana tem muita água. É um grande rio, não é? Com barcos grandes? Perguntou ele, mais interessado na grandeza do rio e nos barcos que nunca tinha visto de perto. Eu já tinha atravessado tantas vezes o Tejo de cacilheiro que não liguei à conversa dos barcos. 
O meu amigo Samuel era um abelhudo nato. Olhou o mapa, olhou para mim e como se fosse o mais natural disse: e se a gente fosse lá ver o rio. Eu quero é ver a Espanha, respondi, sem pensar nas consequências. Então bora! Lá no fundo eu queria mesmo ver se a Espanha era como Portugal ou era como a França de que o meu pai falava.

Pegamos nas nossas bicicletas e fizemo-nos à estrada. Era ínicio de verão. A tarde longa. Bora. Vamos ver o rio grande. Vamos ver a Espanha. Rapidamente chegamos à 125. Era só pedalar sempre a direito até acabar a estrada informei eu, armado em conhecedor de geografia. Já tinha ido uma vez no carocha do meu pai até Cacela Nova, ainda o meu avô era vivo e sabia que não tinha nada que enganar. Era só pedalar pela estrada fora que lá chegaríamos, mais cedo ou mais tarde. Rapidamente tomamos a descida da Alfandanga, daí até ao Livramento foi um salto, depois a Luz de Tavira. Quando atravessamos o Gilão em Tavira já o selim da bicicleta tinha bicos. Na Conceição de Tavira e já o ritmo não era o mesmo. Água? Tínhamos sede e só uma estrada cheia de buracos, que nunca mais acabava, com o alcatrão derretido a agarrar-se às rodas, pela frente. Paramos numa curva à sombra de enormes eucaliptos a descansar. Do outro lado da estrada brilhavam laranjas sumarentas num pomar vedado e inacessível. Continuamos. Pensei para mim que talvez não tivesse sido boa ideia. Numa tasca de beira de estrada bebemos água e continuamos, com os trazeiros já doridos e as pernas a fraquejar. Nunca tinhamos feito tantos quilometros de bicicleta duma vez só e ainda nem estavamos a meio. A tarde avançava no sentido contrário ao das nossas pedaladas cada vez mais lentas.

A mim não me passou pela cabeça não ir ver a Espanha. Ao meu companheiro de aventura não lhe passou pela cabeça não ver o Guadiana naquele dia. Prosseguimos. Os carros pareciam passar por nós cada vez com mais velozes. A aragem estava mais fresca e nós íamos ver a Espanha e o grande rio.
Milhares de pedaladas depois a estrada acabou. Entramos por ruas perpendiculares umas às outras. Casas antigas. Ruas traçadas a régua e esquadro escondiam o alvo da nossa corrida.

Ali estavamos nós: o rio a nossos pés. Largo, enorme, cheio de barcos. Mas não eram tão grandes como o pai dizia. Devia haver ainda maiores. O Samuel embasbacado... Eu frustrado. O rio era tão grande que não dava para ver como era a Espanha. O casario ao longe era igual a Portugal: arvores, montes, campos. Perdi a viagem. O rio estava ali aos nossos pés, mas a Espanha?... Foi ali que eu jurei a mim mesmo que um dia ia conhecer tudo o que havia para lá daquele rio.

Não ficamos a ver o casario de Ayamonte mais que cinco minutos. Tinhamos que voltar. A tarde escoava-se rapidamente. As nossas mães não faziam ideia, nem podiam imaginar que estivessemos tão longe. Havia mais 55 km para pedalar já sem a gana de chegar. Cansados, os trazeiros «assados», as pernas doridas, fome! Tantos quilómetros pela frente!

Missão cumprida. A luz diurna extinguia-se. Era quase hora de jantar. Não contamos a ninguém a maior viagem feita por conta própria até àquela data. Ninguém ficou a saber que nos aventurámos até às margens do grande rio do sul, correndo perigos e desafiando a sorte só para poder vislumbrar a Espanha da outra margem.

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